I - OBJETIVOS
No ensejo de que o ano de 2008 foi marcado pelo centenário da morte de Machado de Assis, conjecturou-se sobre o estudo de um de seus romances.
A escolha recaiu em “Helena” por dois motivos: primeiramente porque o autor sentia uma confessada preferência por ele, segundo, foi com este romance que Machado firmou-se como escritor respeitado e requisitado pelo público e pela mídia.
Poder-se-ia, ainda ressaltar, que “Helena” foi o principal trabalho de Machado de Assis da fase romântica de sua obra e um dos mais populares até nossos dias.
Outro objetivo deste estudo é sopesar no romance a presença do conflito, da incerteza e sofrimento sentimentais, problemas éticos e existenciais, o amor paternal e filial, que até a sua publicação no ano de 1876, inexistia na literatura brasileira.
II- METODOLOGIADe princípio, após a leitura e releitura do romance “Helena”, foram anotados vários trechos que selecionei por sua importância no enredo, principalmente aqueles que continham metáforas e que se prestavam a uma interpretação semiológica.
A seguir, procedeu-se a leitura de alguns críticos literários, entre eles Lúcia Miguel Pereira, Nelson Werneck Sodré, Augusto Meyer, Regina Zilberman, H. Pereira da Silva, Ana Maria de Almeida etc.
Dos trechos escolhidos, algumas palavras foram separadas e, consultado o Dicionário de Símbolos, consultou aquelas que, de uma certa forma, faziam algum sentido na construção da frase em relação ao enredo do romance.
Consultou-se a mitologia com respeito ao mito de Helena de Tróia.
A história e o ambiente social da época são citados “en passant”, assim como o público alvo de Machado de Assis.
III - DESENVOLVIMENTO3.1 O Romance “Helena”
Nos 28 capítulos do romance, o enredo transcorre de forma linear, ou seja, em linha reta, sem tropeços ou idas e voltas. Uma morte no início, uma morte no final.
Morre o Conselheiro Vale, procede-se a abertura de seu testamento, toma-se conhecimento da existência de Helena, concluindo o romance com a morte desta.
Entre o início e o fim, transcorrem os dez meses vividos por Helena no Andaraí, em companhia do irmão, Estácio, da tia Dona Úrsula, e dos amigos que os visitam regularmente, sendo mais íntimos o Dr Camargo e família Mendonça, por um tempo noivo da heroína, e o Padre Melchior, o conselheiro religioso e sentimental da maioria das pessoas.
Apesar de uma aparente amenidade, o desenvolvimento do enredo não se dá sem conflitos e percebe no seu desenrolar uma série de dificuldades. O primeiro problema, tornado conhecido na abertura do testamento do Conselheiro Vale, refere-se ao anúncio da existência de uma filha ilegítima, assunto comentado por Camargo, sua chegada a Andaraí e conquista da família: o irmão a aceita antes de conhecê-la, porém D. Úrsula resiste por mais tempo.
O segundo grupo de conflitos é mais complexo: Camargo percebe a crescente influência de Helena no seio familiar, sobretudo sobre o irmão, e a possibilidade de que ela venha atrapalhar seus planos relativos ao casamento de Estácio com Eugênia. Ao mesmo tempo, Helena, que aparentemente deveria sentir-se bem no novo lar, confessa ao irmão ser “uma pobre alma lançada num turbilhão”(1). O rapaz vai protelando o pedido de casamento e parece preferir estar em casa, entre seus papéis e parentes, embora não pareça haver qualquer motivo para o adiamento, ainda mais que Estácio e Eugênia se amam desde crianças e desde então prometidos um ao outro.
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(1) ASSIS, Machado de. “Helena”. São Paulo, Ática 1975, p. 39.
Camargo está impaciente com a indecisão do rapaz e resolve intervir, e de forma malévola, ameaçando Helena de tornar público seus passeios matutinos, se ela não auxiliar de forma direta em fazer com que Estácio se resolva a pedir Eugênia.
Por outro lado, Padre Melchior, armado de boas intenções, conclui que a atitude de Estácio não é adequada e aconselha Helena a se casar com Mendonça, que a esse tempo já não escondia seus sentimentos pela moça.
Para melchior, que já nutria alguma desconfiança, o duplo casamento parece uma boa saída para um dilema que se desenhava a olhos vistos, ocasionados por sentimentos clandestinos e condenados pela sociedade.
A verdade se torna clara, quando Estácio recebe carta de Mendonça, revelando a união já programada entre ele e sua irmã. Estácio cai em si e se desespera. Para esse problema, o do amor do jovem pela protagonista, não há solução possível que satisfaça a moral e bons costumes.
A resolução do impasse vem por meio de Salvador: este revelar a verdade sobre a filiação de Helena, os acontecimentos que culminaram com a adoção de sua filha pelo conselheiro, desaparecendo a seguir.
Helena, mergulhada em seus problemas individuais, sua origem ilegítima, sua situação inautêntica no novo lar, impossibilidade de realizar-se na vida sentimental e, devido a tudo isso, não poder ser feliz, não resiste o fato da revelação e o desaparecimento de Salvador, ela escolhe sua própria aniquilação.
A ação do romance, com a morte de Helena, é reconduzida ao seu início: não apenas porque o enredo começa e termina com uma morte, mas também porque com o seu desaparecimento, tudo retorna à situação anterior à abertura do testamento do Conselheiro Vale. Estácio é de novo filho único, está na posse integral de sua fortuna (divisão muito lamentada por Dr. Camargo) e pode casar com a prometida da infância, a bela e fúvola Eugênia.
Tudo está mudado após a passagem de Helena, mas, ainda assim, há o retorno ao início, não só porque se recupera a situação por onde a narrativa começou; também porque esta induz ao retrospecto, o leitor sendo levado a rever a trajetória ficcional na busca das pistas e situações que provocaram o fim lastimável da heroína.
3.2 A releitura da estratégia do autor
“Helena” foi publicada originalmente sob a forma de folhetim no jornal “O Globo”, saindo com regularidade entre agosto e novembro de 1876, e só depois, mas no mesmo ano, sendo editada em livro, pela Garnier.
O texto motiva o retrospecto, obrigando o leitor a interpretar os acontecimentos. Não basta acompanhar a linearidade cronológica com que os eventos são apresentados: enigmas são plantados durante esse percurso e precisam ser reexaminados, a fim de se alcançarem o sentido e a coerência do relato. (ZILBERMAN, 1989, p.76)
Machado de Assis, provavelmente já havia programado o texto desde o início pára a sua publicação, visto que quando começou a lançá-lo em capítulos pelo “O Globo”, já tinha contrato assinado com a editora Garnier.
Segundo Regina Zilberman (1989), a narrativa parece apresentar um esquema definido e organizado desde a página de abertura. A ação não avança desconsiderando o que foi apresentado antes; pelo contrário, as pistas dispostas durante o percurso são retomadas e explicadas, deixando em aberto apenas pequenos detalhes. Machado de Assis redigiu a intriga com planejamento e determinação, não deixando ao sabor das circunstâncias a sorte de seus protagonistas. Traçou antes o destino deles, não se deixando comover com a retórica sentimental com que ele mesmo os caracteriza.
Para despertar o interesse do leitor, Machado espalhou ao longo do enredo vários enigmas, colocados em momentos estratégicos. Exemplo disso é a confissão de Helena, que diz ter a alma num turbilhão e ativa a curiosidade de Estácio numa cena que se possa logo após o passeio a cavalo feito pelos dois, quando tudo parecia transcorrer na normalidade, com a jovem subindo de cotação no conceito da família, na casa e no círculo de relações dos Vale. Entretanto, de outra feita, plantou-se o mistério; a curiosidade? O ciúme?
No dia seguinte de manhã, informado de que a tia dormia sossegadamente, Estácio abriu uma das janelas do quarto e relanceou os olhos pela chácara. A alguns passos de distância, entre duas laranjeiras, viu Helena a ler atentamente um papel. Era uma carta, longa de todas as suas quatro laudas escritas. Seria alguma mensagem amorosa?Esta idéia molestou-o muito. (ASSIS, 1975, p. 46)
A malévola alusão de Camargo aos passeios de Helena, é outra dessas iscas lançadas para chamar a atenção do leitor e incitá-lo a prosseguir a leitura, num ponto em que tudo parecia calmo, com o narrador sem ter muito mais a contar. Entretanto, as ações se entrecruzam, visto que, em outra passagem, Estácio ao pedir à irmã que não saísse a passeio sem sua companhia, esta lhe responde que talvez não o possa obedecer, pois este nem sempre poderá acompanhá-la. (2)
São todos pontos da narrativa que estimulam o retrospecto. A introdução da casa de bandeira azul mostra isso: ela aparece quando do primeiro passeio de Helena, ainda na companhia de Estácio. A chegada ao local parece casual, revelando a moça na ocasião ser boa cavaleira, quando, na véspera, tenha pedido ao irmão para ensinar-lhe equitação. Aparenta também ser bem segundas intenções o desenho da mesma casa, entregue a Estácio no dia de seu aniversário.
Pelo retrospecto, verifica-se ser falsa a casualidade: Helena planejara visitar Salvador, e a bandeira azul era o sinal combinado entre os dois. Este tipo de revisão, portanto, não se faz necessário apenas para compreender ao acontecimento; ele leva a encará-los de maneira diversa, de que resulta uma modalidade de desenvolvimento. (ZILBERMAN, 1989, p. 77)
Outra forma de ativar a curiosidade, e também a imaginação, é deixar uma ação em suspenso. Após o colóquio em Camargo, na festa de aniversário de Estácio, Helena pretende escrever uma carta. Para a família? Para o pai? Machado não esclarece. O leitor faz conjecturas...
Visto por outro ângulo, o retrospecto é, por si mesmo, contraditório: indesejado pelo protagonista, moça de caráter confessadamente irrepreensível e foco da simpatia da obra, é induzido pelo narrador, que, com cuidado, dissemina mistérios pela intriga, simultaneamente sugerindo que se volte a eles para melhor entender a ação apresentada. Estabelece-se o atrito entre a personagem e o enredo, colocando-se no meio o alvo tão evitado e, ao final concretizado: o desmascaramento. (ZILBERMAN, 1989)
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(2) ASSIS, Machado de. “Helena”. São Paulo, Ática: 1975, p. 53
Embora alegue inocência, Helena teme o desmascaramento acima de tudo, pois a revelação de sua identidade coincidirá com a atribuição de interesse calculista de suas atitudes. Embora seu destino tenha sido decidido sempre em instâncias independentes de sua vontade – o abandono de Salvador por Ângela, a adoção do Conselheiro, a aceitação dos termos do testamento por insistência do pai – é ela quem acaba sofrendo as conseqüências e precisa se justificar. Essas ações à revelia de sua vontade atenuam em julgamento mais rigoroso, mas mesmo assim permanece um resíduo pelo qual é responsável e que sua integridade pessoal rejeita a si própria: prestou-se à farsa, aceitou as condições, aqui de forma dúbia, pois, querendo ou não, seduziu Estácio; além disto, as testemunhas que poderiam defendê-la morreram (Ângela e o Conselheiro) ou desapareceram (Salvador). Não dispõe de nenhum álibi e, se houvessem outros depoimentos favoráveis, teriam de proceder dos diretamente interessados, como Estácio e D. Úrsula. Fica assim, entregue a si mesma e à sua parcela de culpa.
Mas o problema não diz respeito somente a Helena. Nela se concentra um dilema que aflige outras personagens: Eugênia, embora sua frivolidade impeça-a de compreender a natureza de sua condição social, e Mendonça. É por meio dele, que aparece o drama crucial das personagens. Ele precisa provar que seu afeto por Helena é puro e bem intencionado, embora o casamento de ambos – ele, de boa família, mas pobre e sem futuro fora do funcionalismo público; ela, rica, mas de origem espúria, ainda que reconhecida pelo pai fictício – não possa ser mais conveniente aos olhos dos demais e deles mesmos.
A história manipula essa ambivalência: todos agem com a maior correção, todavia, suas ações não resistem ao crivo da análise retrospectiva. Precisam parecer imaculados ao extremo, e só esse exagero compensa o risco da desconfiança. E ainda assim esta os submete, porque parte de dentro do próprio enredo, e nem Mendonça escapa, pois dele é antecipado que só um bom casamento o salvaria do trabalho e da mediocridade do Rio de Janeiro. (ZILBERMAN, 1989, p. 78)
Entretanto, se pesa sobre essas personagens a ameaça de desmascaramento, ninguém deveria experimentar este problema com mais intensidade que Estácio. O jovem, rico e talentoso filho do Conselheiro Vale não precisa temer por seu passado, nem pelo futuro, antecipado pela carreira política em que ensaia os primeiros passos mas, por outro lado, ele oculta a paixão mais condenável: a atração que sente por Helena, de natureza incestuosa, mascarada por um temperamento doméstico e um coração generoso.
O processo de ocultação dos sentimentos interiores de Estácio é mais fino. Enquanto Helena está consciente de tudo, escondendo de todos, mas não de si mesma, as peças mais importantes do enredo, Estácio não somente atua de modo inconsciente, como não quer admitir a natureza de seu afeto, reprimindo-o como tal e deslocando-o para o ciúme possessivo com que trata o caso sentimental da irmã e seu amigo Mendonça.
O mascaramento é duplo – Estácio, como Helena, esconde a verdade do leitor; mas, ao contrário dela, esconde-a também de si mesmo. É necessária a intervenção de uma instância superior, papel atribuído a Melchior, para ela ser extraída com todas as palavras. só então o leitor tem confirmadas suas suspeitas; mas, chegando a esse estágio, ele pode desconfiar de tudo, de modo que nova ocultação se faz necessária. Mais uma vez a morte de Helena se mostra oportuna, pois, com ela, ficam sepultados os segredos – e, mais importante, as suspeitas que deterioram a pureza das intenções e dos sentimentos, a integridade das pessoas, a harmonia e regularidade do universo doméstico. (ZILBERMAN, 1989, p. 79)
A oscilação entre encobrimento e revelação, permite ao autor analisar a índole das regras sociais, que existem para garantir a aparência de normalidade e honestidade a ser transmitida pelo comportamento das pessoas.
3.3 Sociedade e aparência
No momento ficcional do romance Helena (1850-1851) a sociedade carioca é regida por “leis” que se lastreiam sob uma dupla perspectiva. E é sob essas duas faces que norteiam as condutas que machado de Assis desenvolve o enredo.
De um lado, as leis regulam a vida familiar, condenando a atração incestuosa que talvez fosse mais presente do que se possa imaginar, dentro da estrutura patriarcal de uma sociedade fechada, imóvel e fundada na dominação de um chefe da clã sobre parentes, agregados e servos (ZILBERMAN, 1989). O autor trabalha esse aspecto em níveis diferentes. O menos complexo e mais evidente quando eclode a verdade diz respeito ao par Estácio-Helena: Melchior denuncia, o rapaz ama a irmã, mas o fato é desculpável, por decorrer provavelmente da falta de convivência dos dois durante a infância. Poder-se-ia dispensar as justificativas já que eles não são irmãos: o incesto é apenas aparente. O escândalo é contornado, mas, até a verdade se tornar evidente, o leitor é levado a aceitar a situação que, embora agradável aos cânones românticos da época, é insuportável do ponto de vista das convenções.
Num segundo plano dá-se a relçação Camargo-Eugênia. Camargo, que é também o vilão da intriga, embora, no fundo, não prejudique ninguém, tem um amor possessivo pela filha, através de quem deseja triunfar socialmente. A causa da paixão é, ao mesmo tempo, sua atenuante, com o que Machado resguarda mais uma vez as aparências.
Todavia, no terceiro nível, a relação incestuosa é menos evidente e, simultaneamente, mais daninha: Helena e salvador mantém um relacionamento de amantes, encontrando-se às escondidas e às expensas dos prejuízos que as visitas dela possam lhe carrear. Relativamente a Salvador, Helena age como Electra, cultuando o pai que fora traído pela mãe; e por ele sacrifica, morrendo ao perdê-lo. Eis outro dos agravantes que a condenam á morte, sendo que, de novo, não conta com uma desculpa à altura do crime. (ZILBERMAN, 1989, P. 80).
No que diz respeito ao casamento, tema legalmente mais fácil de ser abordado, na trama do romance não deixa de ser problemático. “Helena”, a grosso modo, apresenta alguns casais enamorados que não podem casar entre si, visto que o sentimento mais profundo e autêntico, entre a heroína e Estácio, sofre dupla proibição: a do incesto, já referida; e a da diferença social, quando se devolve a moça à sua classe de origem. O casal ideal está separado de modo irreversível; restam os casais possíveis: Estácio e Eugênia; Helena e Mendonça. Apesar de contarem com o beneplácito da instituição mais respeitada no romance, a Igreja, representada por Padre Melchior, há evidente assimetria: Estácio é muito mais rico que Eugênia; Mendonça é muito mais pobre que Helena. E se Mendonça oferece a compensação de ser de “boa família”, ao contrário de Helena, de origem obscura. Eugênia, da sua parte, traz um dote medíocre.
Lidando com a oscilação entre encobrimento e revelação, Helena chega à beira de um tema que poria em causa a organização da sociedade, suas leis e instituições. Diante do abismo que se abre, ele recua: ainda assim, não deixa de questionar a aparência, fazendo-o por meio do modelo narrativo, de tipo prospectivo /retrospectivo, e do comportamento das personagens, seguidamente preocupadas com que os outros vão pensar e recebendo a confirmação de que essa atitude se justifica. (ZILBERMAN, 1989, p. 81)
Machado de Assis, em linhas gerais, assume no romance o papel de defensor das aparências, procurando apresentar o mundo interior das personagens num ângulo que visa confirmar que as atitudes delas são corretas. A cena que se segue logo após à proposta de casamento de Helena, feita por Mendonça, é esclarecedora: proponente está em vias de ser denunciado como oportunista por Estácio e mais toda a sociedade carioca. O socorro parte do narrador, tendo participação direta no evento, a fim de abonar e salvaguardar a sinceridade e nobreza do seu comportamento.
Segundo Regina Zilberman (1989), o narrador está sendo conivente com as aparências, pois suas palavras visam impedir que se faça mau juízo do rapaz; ou que venha à luz o caráter conveniente do matrimônio para as duas partes. Em outras palavras, quando expõe a interioridade de Mendonça aos olhos do leitor, quer encobrir a evidência de que consórcios como o de Mendonça e Helena faziam parte do mercado amoroso da época, segundo o qual cada um dos parceiros entrava com sua cota, comprando ou vendendo o corpo que lhe faltava.
3.4 O leitor de “Helena” e seu momento histórico
O espectro social dos leitores da época em que o romance saiu em folhetim e logo após publicado (1876) era bastante reduzido, pertencendo a um grupo socialmente elevado ou a um setor intermediário, ainda pouco representativo, composto da classe média ou de brancos livres que sabiam ler e trabalhavam como agregados ou dependentes da alta burguesia.
A ação ficcional passa-se entre 1850-1851, sendo os fatos mais remotos retrocedendo às décadas de 20 e 30, respectivamente quando o Conselheiro casou e nasceu Estácio, Ângela e Salvador fugiram e nasceu Helena. Uma geração separa a data de produção da obra e a dos eventos fictícios, distância temporal ainda rara nos escritos de Machado.
Conforme Regina Zilberman (1989), talvez tanto o distanciamento (publicação da obra), quanto o ano durante o qual transcorre a ação, tenham sua razão de ser, já que os historiadores com notável unanimidade acentuam a importância de 1850 para a trajetória do Segundo Império. Nesse ano, pressionado pelo governo inglês, o Brasil obrigou-se a definitivamente proibir o tráfico de escravos africanos. Na ocasião, o país assistia ao crescimento da importância do café na pauta das exportações, substituindo o açúcar e os demais artigos agrícolas em que se fundava a economia desde o período colonial. Também as fazendas produtoras de café dependiam do braço escravo; todavia, muitas delas vão aos poucos se organizar sobre bases mais dinâmicas e adequadas às necessidades do capitalismo moderno, estimulando muito lentamente uma política de imigração de trabalhadores europeus brancos.
Estes acontecimentos – proibição do comércio de africanos, reduzindo-o ao tráfico interno que importará negros do Nordeste, onde a cultura do açúcar, derrotada pelos cafeicultores e privada de braços, decairá mais rapidamente; a mudança de pólo econômico, aproximando-o geograficamente da capital do país, somados a outros, como o início da modernização do Rio de Janeiro e os primeiros passos na direção da industrialização, vão modificar bastante a sociedade carioca.
Entre o Rio de Janeiro de Helena – personagem e o de “Helena”- livro, as transformações são significativas: a velha sociedade patriarcal, de fortes componentes coloniais, estava sendo substituída por uma formação social mais diversificada, onde, à tradicional oligarquia rural, se acrescentavam uma burguesia endinheirada à custa dos negócios de importação e exportação ou dos novos empreendimentos financeiros, uma classe intelectual mais ativa, que reivindicava mudanças políticas, e um grupo intermediário, mas não menos importante, em que se misturavam imigrantes, funcionários públicos, comerciantes, jornalistas, professores etc.
A realidade ficcional de “Helena” não é bem essa: ali representa-se uma sociedade rigidamente dividida e hierarquizada, com opções muito restritas de trabalho, ascensão e realização pessoal. De certa maneira, todos são vítimas dessa estratificação e estreiteza, pois mesmo Estácio perde sua oportunidade de ser feliz. Sob este aspecto o livro esboça uma crítica sutil; ao mesmo tempo, antecipa o final desse mundo, já que sua superação está em vias de acontecer a narrativa principia.
(ZILBERMAN, 1989, p. 85).
Talvez seja este o motivo do enredo começar e terminar com uma morte que, reconduzindo os acontecimentos à origem confere-lhes agora uma nova dimensão. Realizou-se o rito de passagem, e Helena foi o objeto de sacrifício. Esta circunstância indica que algo mudou, pois o ritual prepara a atualidade para o que está por vir. Se ao final a ação retoma o ponto de partida é porque foi necessário corrigir seu percurso, que este não é mais o mesmo, tendo-se rompido o ciclo da estagnação, uma nova realidade mostrando-se apta para acolher a emergência/ urgência do novo.
Entretanto, a responsabilidade em última instância por esse sacrifício cabe ao Conselheiro, síntese completa do velho mundo colonial, conforme sua descrição, na primeira página do romance, sugere:
O conselheiro, posto não figurasse em nenhum grande cargo do Estado, ocupava elevado lugar na sociedade adquiridas cabedais, educação e tradições de família. Seu pai fora magistrado no tempo colonial, e figura de certa influência na corte do último vice-rei. Pelo lado materno descendia de uma das mais distintas famílias paulistas. (p. 11)
Digno de atenção é o fato de a história contemporânea à ação ficcional não ser mencionada na narrativa: não há qualquer referência aos eventos que agitavam a vida carioca nos anos 50 e que direcionariam o país para uma nova fase. A vida no Andaraí parece não se dar conta desses acontecimentos, circunstâncias que amplia a cegueira de Estácio, indicando ao leitor que, se depender do herói, igualmente terá seu raio de visão restringido.
É oportuno observar como se opera essa omissão: a história encaminhava-se para a superação da organização social herdada da colônia; dentro do universo fechado da narrativa, a marcha daquela não é percebida, nem mencionada. Talvez porque, no fundo, não se constatar diferença substancial; ou porque o autor tivesse preferido optar pelos valores tradicionais (3), ainda quando vitimavam pessoas tão qualificadas como Helena.
Conforme Regina Zilberman (1989), é Helena que corre em direção mais diametralmente oposta à da história. Esta, coincidindo com a modernização da sociedade, determinará a relativa emancipação da mulher. A heroína, porém, ainda não conta com essa opção: ou permanece na dependência dos Vale ou se prostitui, como sua mãe, que fez ambas as escolhas. A possibilidade de emancipação começava a se esboçar para a leitora de Helena, mas era ainda remota: a mudança não tinha chegado a ponto de converter a mulher em força de trabalho fora do lar e do casamento. Apenas poderia ser cogitada e pode-se supor que Machado tenha desejado lidar com esse intervalo. Nem Helena, nem a leitora tinham chances diferentes, mas o autor não aspirava à completa assimilação entre protagonista e destinatário.
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(3) c.f a respeito Schwarz, Roberto. Ao vencedor as batatas; Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo, Duas Cidades, 1977.
IV – MITOLOGIA, METÁFORAS E SEMIÓTICA
4.1. Pequena elucubração mitológica
Ao longo do romance “Helena”, a noção de que os filhos pagam pelos erros dos pais é reiterada com alguma insistência. A cena entre Estácio e o padre, representa-a bem, o rapaz indiretamente acusando o pai por causar-lhe os problemas sentimentais insolúveis que está enfrentando.
Por esta razão, a escritora e pesquisadora norte-americana Helen Cladwell, estudiosa da obra machadiana, aproxima o jovem Estácio a outro paradigma mítico, vendo-o como reencarnação de Orestes. Helena, por sua vez, não é menos vítima: primeiramente, da irresponsabilidade de Salvador e Ângela ; depois, do testamento do Conselheiro que, ao causar-lhe a imolação futura, associa a heroína a outro modelo da mitologia: Ifigênia, irmã e Orestes e Electra, sobrinhos da Helena grega de quem herda o nome.
4.2. Metáforas e semiótica(4)
“ O sol e a agitação alastravam-lhe a testa de pérolas de suor; ao ofego da marcha apressada juntava-se o da violência comoção”. (HE – p. 225)
- as gotas de suor ao sol figuram-se como pérolas.
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(4) Machado de Assis. Obra Completa (Org. Afrânio Coutinho). Rio de Janeiro. Ed. José Aguilar, 1959. V.I
Pérola (simbologia): na Europa medieval, a pérola era utilizada na medicina para tratar a melancolia, a epilepsia (Machado era epilético), a demência, etc.
Na literatura persa, designa-se com o nome de pérola um pensamento refinado, tanto em função de sua beleza quanto do fato de que ele é produto do gênio criador do autor.
“O céu não ficou logo claro; mas o vento amainou, e era de esperar que o sol se desfizesse enfim do seu capote de nuvens” (HE – p. 202)
- As imagens do capote e do manto aplicam-se às nuvens e ao nevoeiro, num trecho todo metafórico, pois que a tempestade nada mais é que arrufo de namorados.
Nuvem (simbologia): na mitologia grega, Helena, por que Paris se apaixonou e por quem se lutou a guerra de Tróia, não era senão um fantasma de nuvens, devido à magia de Proteu.
“Esse estado não durou muito; dez minutos depois de deixar a casa de Camargo, sentiu alguma cousa semelhante a dentada de um remorso”. (HE – p. 202)
- um sentimento qualquer aparece freqüentemente sob a imagem de uma dentada.
Dentada (simbologia): a marca dos dentes na carne é como o sinal gravado de algo espiritual: intenção, amor, paixão. É o selo que indica uma vontade de possessão.
“A vergonha flamejava no rosto; Helena voltou as costas ao irmão e afastou-se rapidamente”. (HE – pp. 221/222)
- o rosto com força de espelho.
Rosto (simbologia): o rosto é o símbolo do que há de divino no homem, um divino apagado ou manifesto perdido ou reencontrado. O rosto, símbolo do mistério, é como uma porta para o invisível, cuja chave se perdeu.
“Ele contemplava a moça, com o olhar fixo e metálico dos gatos; (...)”. (HE – p. 231)
- o olhar do tipo felino é freqüente, assumindo vários tipos de sugestão e interpretação.
Gato (simbologia): o simbolismo do gato é muito heterogêneo, pois oscila entre as tendências benéficas e as maléficas, o que se pode explicar pela atitude a um só tempo terna e dissimulada do animal.
“Vimo-lo apresentar a Estácio a maçã política; (...)” (HE – p. 237)
- a tentação política aparece figurada na maçã.
Maçã (simbologia): A maçã é simbolicamente utilizada em diversos sentidos aparentemente distintos, mas que mais ou menos se aproximam: é o caso do pomo da Discórdia, atribuído pelo herói Paris, raptor de Helena; dos pomos de ouro do Jardim das Hespérides, que são frutos da imortalidade; da maçã consumida por Adão e Eva (símbolo de pecado e desobediência); da maçã do Cântico dos Cânticos que representa a fecundidade do Verbo divino, seu sabor e seu odor.
Trata-se, portanto, em todas as circunstâncias, de um meio de conhecimento, mas que ora é o fruto da Árvore da Vida, ora o da Árvore do Conhecimento do bem e do mal: conhecimentos unificador, que confere a imortalidade, ou conhecimentos desagregador, que provoca a queda.
“Chorou muito; chorou todas as lágrimas poupadas durante aqueles meses plácidos e felizes, leite da alma com que fez calar a pouco e pouco os vagidos de sua dor”. (HE – p. 231)
- neste exemplo, o autor reforça a imagem das lágrimas como leite, que, assim como faz a uma criança calar os seus gemidos e aquietar-se, acalma e cala a dor da alma.
Leite (simbologia): primeira bebida e primeiro alimento, no qual todos os outros existem em estado potencial, o leite é naturalmente o símbolo da abundância, da fertilidade e também do conhecimento; e enfim, como caminho da iniciação, símbolo da imortalidade. O leite possui também virtudes curativas contra veneno.
“Estou velho, minha filha; estes cabelos brancos são já a neve desse mar polar para onde navegamos todos”. (HE – p. 245)
- a velhice se associa à idéia figurada de “inverno da vida”, a que se liga, naturalmente, a idéia de “neve” e de “mar polar”. O “branco” dos cabelos é o sinal visível da associação.
Branco (simbologia): é uma cor de passagem, no sentido a que nos sugerimos ao falar dos ritos de passagem: e é justamente a cor privilegiada desses ritos, através dos quais se operam as mutações do ser, segundo o esquema clássico de toda iniciação: morte e renascimento. Por isso, o branco é primitivamente a cor da morte e do luto.
Mar (simbologia): águas em movimento, o mar simboliza um estado transitório entre as possibilidades ainda informes, uma situação de ambivalência, que é a de incerteza, de dúvida, de indecisão, e que pode se concluir bem ou mal.
Velhice (simbologia): se a velhice é um sinal de sabedoria e de virtude, se a China desde sempre honrou os velhos, é que se trata de uma prefiguração de longevidade, um longo acúmulo de experiência e de reflexão, que é apenas uma imagem imperfeita da imortalidade. Assim, a tradição conta que Lao-Tsé nasceu de cabelos brancos, com o aspecto de um velho e que daí vem o seu nome, que significa Velho Mestre.
“Os olhos fitos nele, eram como um espelho polido e frio (...)”. (HE – p. 271)
- metáfora por comparação, significando uma censura grave.
Olho (simbologia): o olho, órgão da percepção visual, é, de modo natural e quase universal, o símbolo da percepção intelectual.
Espelho (simbologia): o espelho, enquanto superfície que reflete, é suporte de um simbolismo extremamente rico dentro da ordem do conhecimento.
O que reflete o espelho? A verdade, a sinceridade, o conteúdo do coração e da consciência... De acordo com Plotino, o homem enquanto espelho reflete a beleza ou a feiúra. O importante está, acima de tudo, na qualidade do espelho, sua superfície deve estar perfeitamente polida, pura, para obter um máximo de reflexo.
“ouvindo a palavra do irmão, Helena susteve o passo, e fitou-o com um olhar digno, um desses olhares que parecem vir das estrelas, qualquer que seja a estatura da pessoa”! (HE – p. 223)
- formulação metafórica iniciada por demonstrativo estabelecendo o vínculo entre o termo A, o comparativo, e o termo B, o comparante, empregada freqüentemente por Machado.
Estrela (simbologia): o caráter celeste das estrelas faz com que elas sejam também símbolos do espírito e, particularmente, do conflito entre as forças espirituais (ou de luz) e as forças materiais (ou das trevas). As estrelas transpassam a obscuridade; são faróis projetados na noite do inconsciente.
Palavra (simbologia): sejam quais forem às crenças e os dogmas, a palavra simboliza de uma maneira geral a manifestação da inteligência na linguagem, na natureza dos seres e na criação contínua do universo; ela é a verdade e a luz do ser.
Conclusão
Devendo atender as exigências de seu público, eminentemente burguês e principalmente feminino, amante das narrativas melodramáticas, Machado de Assis vai desenvolver um tema muito explorado pelos escritores românticos: a obsessão pelo amor impossível ou sacrílego, tornado proibido por leis morais e sociais, que só se resolve na renúncia total à felicidade ou na morte.
Machado, preso também às convenções sociais e às contingências dos modismos românticos, não dá uma mínima chance a Helena de sobrevivência ou felicidade. Executa-a inapelavelmente, e mais, tudo indica que a sentença já havia sido anunciada desde o primeiro capítulo, sem chances de recursos ou apelação, já que o autor era a última instância.
O autor trabalha sem contradizer as convenções do romance romântico, o discurso derramado e o moralismo da solução. Se quisesse avançar e assumir outros riscos, teria de exigir mais da heroína, forçando-a a tomar decisões que fraturassem o universo que vivia. Mas deixa de fazê-lo não só porque, como ela, pode ser considerado moralista e liberal: é que, igualmente, seu público não suportaria o confronto com uma Helena emancipada, dona do próprio destino. E como seu criador, Helena recua no momento crucial, inutilizando todas as saídas, refugiando-se no único lugar que pensou ter-lhe sobrado: o do ideal, que só pode manter se aniquilar.
Machado conclui o veredicto: pena máxima.
Referências Bibliográficas
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