Parafraseando Barthes (1970), “é escritor aquele que quer ser”. Um professor ao desejar sê-lo, de letras, deve transformar o seu projeto em vocação, o trabalho da linguagem em dom de escrever, e a técnica em arte: assim nasceu o mito do “bem-escrever”: o professor de letras passa a ser um sacerdote assalariado, guardião meio respeitável do santuário da palavra.
O professor, como escrevente, diria ainda Barthes, uma pessoa “transitiva” coloca um fim (testemunhar, explicar, ensinar) para o qual a palavra é apenas um meio.
A diferenciação entre escritor e escrevente: aquele tem algo de sacerdote, o escrevente de clérigo; a palavra de um ato intransitivo (portanto, de certo modo, um gesto), a palavra do outro uma atividade.
Um dos aspectos mais importantes para a formação do professor hermenêutico – reflexivo seria saber distinguir as diferenças entre teoria, crítica e história literária. Há, primeiro, a distinção entre a literatura vista como ordem simultânea e a literatura vista primordialmente como uma série de obras dispostas em ordem cronológica e como partes integrais do processo histórico. Há, então a distinção adicional entre o estudo dos princípios e critérios da literatura e o estudo das obras de arte literária concretas, quer as estudemos isoladamente ou em uma série cronológica. Ela parece ressaltar mais essas distinções ao descrever-se “teoria literária” o estudo dos princípios da literatura, das suas categorias, critérios, etc, e diferenciar os estudo de obras de arte concretas na “crítica literária” (de abordagem principalmente estática) ou “história literária”. Naturalmente, o termo “crítica literária” muitas vezes tem sido usado de maneira a incluir toda teoria literária. O termo “teoria da literatura” poderia incluir também as necessárias “teoria da crítica literária” e “teoria da história literária”.
O professor deve ter em mente que essas distinções são razoavelmente óbvias e têm aceitação bem ampla. Menos comum, porém, seria a percepção de que os métodos assim designados não podem ser usados isoladamente, eles estão de tal maneira entrelaçados tornando-se inconcebíveis a teoria literária sem a crítica ou a história, a crítica sem a teoria e a história, ou a história sem a teoria e a crítica. Obviamente, a teoria literária seria impossível, exceto com base em um estudo de obras literárias concretas. Não se pode chegar a critérios, categorias e esquemas no vácuo. Inversamente, porém, nenhuma crítica ou história é possível sem algum conjunto de questões, algum sistema de conceitos, alguns pontos de referência, algumas generalizações. Naturalmente, não se trata aqui de nenhum dilema insuperável: toda vez que se lê tem-se algumas idéias preconcebidas e sempre possibilitando mudar e modificar essas percepções depois de mais experiência com obras literárias. O processo é dialético: uma interpenetração mútua de teoria e prática. Houve tentativas de isolar a história literária da teoria e da crítica. Essa distinção é inteiramente insustentável como afirma a autora Perrone-Moisés:
Simplesmente não há dados na história literária que sejam “fatos” completamente naturais. Há julgamentos de valor implícitos na própria escolha de materiais: na distinção preliminar entre livros e literatura, na mera alocação de espaço a este ou àquele autor. Mesmo a verificação de uma data ou título pressupõe algum tipo de julgamento, em que seleciona este livro ou acontecimento específico dentre os milhões de outros livros e acontecimentos.
Geralmente, porém, a argumentação a favor de isolar a história literária da crítica literária assenta-se em fundamentos diferentes. Não se nega que sejam necessários atos de julgamentos, mas argumenta-se que a história literária tem os seus próprios padrões e critérios peculiares, isto é, os de outras épocas. Devemos, argumentam esses reconstrucionistas literários, entrar no espírito e nas posturas dos períodos passados e aceitar os seus padrões, excluindo deliberadamente a intrusão dos nossos preconceitos.
No estudo da literatura, essa tentativa de reconstrução histórica levou à grande ênfase na intenção do autor, supondo-se, poder ser estudada na história da crítica e do gosto literário. Reflete-se, geralmente, a possibilidade de poder verificar essa intenção e se poder perceber-se o autor a cumpriu e também se pode desembaraçar do problema da crítica. Ao autor serviu um propósito contemporâneo e não há nenhuma necessidade ou mesmo possibilidade de crítica adicional ao seu trabalho. Há, então, duas centenas de concepções independentes, diversas e mutuamente exclusivas de literatura, cada uma delas “correta” de alguma forma. O ideal da poesia está partido em muitos pedaços e nada resta dele: o resultado deve ser uma anarquia geral ou, antes, um nivelamento de todos os valores. A história da literatura está reduzida a uma série de fragmentos distintos e, portanto, finalmente, incompreensíveis.
Toda a idéia de que a “intenção” do autor seja o tema adequado da história literária parece, contudo, bastante errada. O significado de uma obra de arte jamais se esgota na sua intenção nem equivale a ela. Como sistema de valores, conduz a uma vida independente. O significado total de uma obra de arte não pode ser definido meramente em função do seu significado para o seu autor e os seus contemporâneos.
O professor hermenêutico-reflexivo deve tratar a obra de arte como um processo de adição; a história da crítica pelos seus muitos leitores em muitas épocas. Simplesmente não é possível deixarmos de ser críticos em pleno século XXI enquanto nos ocupamos de um julgamento do passado: de jeito nenhum podemos esquecer as associações da nossa linguagem, das nossas posturas adquiridas, do impacto e da importância dos últimos séculos.
Sendo “professor narrativa”, estudioso da história literária e crítico de um novo tempo, não se contentará com julgar uma obra de arte meramente do ponto de vista do seu próprio tempo – um privilégio do crítico praticante, que reavaliará o passado em função das necessidades de um estilo ou movimento presente.
A única objeção possível contra o estudo de autores vivos seria o argumento de que o estudante perde a perspectiva da obra completa, da explicação que trabalhos posteriores podem dar às implicações do primeiro. Mas essa desvantagem, válida apenas para autores em desenvolvimento, parece pequena quando comparada com as vantagens de conhecer o ambiente e o tempo e com as oportunidades de conhecimento e indagação pessoal ou, pelo menos, de correspondência. Se vale a pena estudar muitos autores de segunda ou mesmo de décima categoria do passado, também vale estudar um autor de primeira ou mesmo de segunda categoria do nosso tempo. Geralmente por falta de percepção ou por timidez que os acadêmicos relutam em julgar por si mesmos. Preferem esperar o “julgamento das eras”, não percebendo que esse nada mais é, que o veredicto de outros críticos e leitores, inclusive outros professores. Toda a suposta imunidade do historiador literário à crítica e à teoria se tornaria inteiramente falsa e por uma razão simples: toda obra de arte existe agora, diretamente acessível à observação e traz solução de certos problemas artísticos, quer tenha sido composta ontem, quer tenha sido composta há mil anos. Ela não pode ser analisada, caracterizada ou avaliada sem o recurso constante a princípios críticos. Segundo Norman Ferster (1929), “O historiador literário deve ser um crítico até mesmo para ser um historiador”.
O professor, “homem-narrativa”, deve entender que a história literária também altamente importante para a crítica literária, tão logo esta ultrapassa o pronunciamento mais subjetivo do “gosto” e “não gosto”. Um crítico que se contentasse em ignorar todas as relações históricas iria se perder constantemente nos seus julgamentos. Não poderia saber pela sua ignorância das condições históricas e erraria constantemente na compreensão de obras de arte específicas.
De acordo com Barthes (1970), por um movimento complementar, o crítico se torna por sua vez escritor. E querer ser escritor não é uma pretensão de estatuto, mas uma intenção de ser. Não importa achar mais glorioso ser romancista, poeta, ensaísta ou cronista? O escritor não pode ser definido em termos de papel ou de valor, mas somente por uma certa consciência da palavra.
É escritor aquele para quem a linguagem constitui problema, que experimenta sua profundidade, não sua instrumentabilidade ou sua beleza. Nasceram então livros críticos, oferecendo-se à leitura segundo as mesmas vias que a obra propriamente literária, se bem que seus autores não sejam, por estatuto, mais do que críticos e não escritores. Se a crítica nova tem alguma realidade, ela consiste nisto: não na unidade de seus métodos, ainda menos no esnobismo que, segundo se diz comodamente, a sustenta, mas na solidão do ato crítico, doravante afirmado, longe dos álibis da ciência ou das instituições, como um ato de plena escritura. Outrora separados pelo mito gasto do “soberbo criador e do humilde servidor, ambos necessários, cada um no seu lugar etc”, o escritor e o crítico se reúnem na mesma condição difícil, em face do mesmo objeto: a linguagem (...).
Recentemente, e muitas vezes, censurou-se a nova crítica dizendo que ela contraria a tarefa do educador, que é essencialmente, ao que parece, ensinar a ler. A velha retórica tinha por ambição ensinar a escrever: ela dava regras de criação (de imitação), não de recepção. Podemos, com efeito, perguntar-nos se não é diminuir a leitura, isolar assim suas regras. Bem ler é virtualmente bem escrever, isto é, escrever segundo o símbolo. (BARTHES, 1970, pp.213,214).
Henry James expressou as seguintes exclamações em seu artigo “A Arte da Ficção” de 1884: “Que é uma personagem senão um determinante da ação? Que é a ação senão a ilustração da personagem? Que é um quadro ou um romance que não seja uma descrição de caracteres? Que outra coisa neles procuramos, neles encontramos?”
Segundo Todorov, duas idéias vêm à luz através delas. A primeira concerne à ligação indefectível dos diferentes constituintes da narrativa: as personagens e a ação. Não há personagens fora da ação, nem ação independentemente de personagens. Mas, sub-repticiamente, uma segunda idéia aparece nas últimas linhas: se as duas estão indissoluvelmente ligadas, uma, entretanto mais importante que a outra: as personagens. Isto diz respeito aos caracteres, à psicologia. Toda narrativa torna-se “uma descrição de caracteres”
Raro observar-se um caso tão puro de egocentrismo que se toma por universalismo, diz Todorov. Se o ideal teórico de James era uma narrativa onde tudo está submetido à psicologia das personagens, difícil ignorar a existência de toda uma tendência da literatura na qual as ações não existem para servir de “ilustração” à personagem, mas onde, pelo contrário, as personagens estão submetidas à ação; e onde, por outro lado, a palavra “personagem” significa coisa bem diversa de uma coerência psicológica ou de uma descrição de caráter. Essa tendência da qual a “Odisséia” e o “Decameron”, “As Mil e Uma Noites” e o “Manuscrito Encontrado em Saragossa” são algumas das manifestações mais célebres, pode ser considerada como um caso-limite de a-psicologismo literário.
Ao se falar de livros como As Mil e Uma Noite, afirma Todorov, devemos dizer que a análise interna dos caracteres aí está ausente, que não há descrição dos estados psicológicos. Para melhor caracterizar esse fenômeno de a-psicologismo, seria preciso partir de uma certa imagem do andamento da narrativa, quando esta obedece a uma estrutura causal. Poder-se-ia então, representar qualquer momento da narrativa sob a forma de uma oração simples, que entra em relação de consecução (notada por um +) ou de conseqüência (notada por um =) com as orações precedentes e seguintes.
Para Todorov, a primeira oposição entre a narrativa preconizada por James e a das Mil e Uma Noites pode ser assim ilustrada: se existe uma oração “X vê Y”, o importante para James, é X, para Sherazade, Y. A narrativa psicológica considera cada ação como uma via que abre acesso à personalidade daquele que age, como uma expressão ou senão como um sintoma. A ação tampouco se considera por si mesma, ela é transitiva com relação a seu sujeito. A narrativa a-psicologia, pelo contrário, caracteriza-se por suas ações intransitivas: a ação importa por ela mesma e nunca como indício de tal traço de caráter. As Mil e uma Noites pertencem, pode-se dizer, a uma literatura predicativa: a ênfase recairá sempre sobre o predicado e não sobre o sujeito da oração. Em As mil e uma Noites, o exemplo mais conhecido desse obscurecimento do sujeito gramatical é a história Sendbad, o marujo. Até mesmo Ulisses sai de suas aventuras mais determinado do que ele: sabe-se que ele é esperto, prudente etc. Nada disso pode ser dito de Sindbad: sua narrativa, embora conduzida na primeira pessoa, é impessoal; dever-se-ia anotá-la como “X vê Y” mas como “Vê-se Y”. Somente a mais fria das narrativas de viagem pode rivalizar, em impessoalidade, com as histórias de Sindbad; mas não qualquer narrativa de viagem: pode-se pensar na “Viagem Sentimental”, de Sterne.
Voltamos a Roland Barthes (1970), em capítulo de Crítica e Verdade, “A Ciência da Literatura”:
Segundo este autor, possuímos uma história da literatura, mas não uma ciência da literatura, porque, sem dúvida, ainda não conseguimos reconhecer plenamente a natureza do “objeto literário”, que é um objeto escrito. A partir do momento, conforme afirma, em que se admitir que a obra foi feita como escritura (e daí tirar as conseqüências), uma certa ciência da literatura torna-se possível. Seu objeto (se ela existir um dia) não poderá ser o de impor à obra um sentido, em nome do qual ela se daria o direito de rejeitar os outros sentidos. Não poderá ser uma ciência dos conteúdos aos quais a mais estrita ciência histórica terá chance, mas uma ciência das condições do conteúdo, isto é, das formas: o que lhe interessará serão as variações de sentidos engendradas e, por assim dizer, engendráveis pelas obras: ela não interpretará os símbolos, mas somente sua polivalência; em uma só palavra, seu objetivo não será mais os sentidos plenos da obra, mas pelo contrário, o sentido vazio que os suporta a todos.
Seu modelo será evidentemente lingüístico. Colocado diante da impossibilidade de dominar todas as frases de uma língua, o lingüista aceita estabelecer um modelo hipotético de descrição, a partir do qual ele possa explicar como são construídas as frases infinitas de uma língua. Quaisquer que sejam as correções às quais sejamos levados, não há nenhuma razão para que não se tente aplicar tal método às obras da literatura: essas obras são elas mesmas semelhantes a imensas “frases” derivadas da língua geral dos símbolos, através de um certo número de transformações reguladas, ou, de um modo mais geral, através de uma certa lógica significante que é preciso descrever. Por outras palavras, a lingüística pode dar à literatura esse modelo gerador que é o princípio de toda ciência, já que se trata sempre de dispor de certas regras para explicar certos resultados. A ciência da literatura terá pois por objeto, não por que tal sentido deva ser aceito, nem mesmo por que o foi, mas por que ele é aceitável, de modo algum em função das regras filológicas da letra, mas em função das regras lingüísticas do símbolo. (BARTHES, 1970, p. 217)
No que concerne à faculdade de linguagem postulada por Humboldt e Chomsky, existe talvez no homem uma faculdade de literatura, uma energia da palavra, que nada tem a ver com o “gênio”, pois ela também não surge de inspiração ou de vontades pessoais, mas de regras acumuladas bem além do autor. Não são imagens, idéias ou versos que a voz mítica da Musa sopra ao escritor, é a grande lógica dos símbolos, as grandes formas vazias que permitem falar e operar.
Será necessário aceitar a redestruição dos objetos da ciência literária. O autor, a obra, são apenas os pontos de partida de uma análise cujo horizonte é uma linguagem: não pode existir uma ciência de Dante, de Shakespeare ou de Racine, mas somente uma ciência do discurso. Essa ciência terá dois grandes territórios, segundo os signos inferiores à frase, tais como as antigas figuras, os fenômenos de conotação, “as anomalias semânticas etc, em suma todos os traços da linguagem literária em seu conjunto; o segundo compreenderá os signos superiores à frase, as partes do discurso de onde se pode induzir uma estrutura da narrativa, da mensagem poética, do texto discursivo, etc”. (BARTHES, 1970, p. 219).
Segundo R. Picard (1970), o critério não pode dizer “qualquer coisa”; no entanto, o que controla suas palavras não é o medo moral de “delirar”. Se o crítico deve dizer alguma coisa (e não qualquer coisa), ele concede à palavra (à do autor e à sua) uma função significante e, por conseguinte a anamorfose na qual ele imprime a obra (e à qual ninguém no mundo tem o poder de se subtrair) sendo guiada pelos constrangimentos formais dos sentidos: a sanção do crítico não é o sentido da obra, e sim, o sentido daquilo que ele diz dela.
O primeiro constrangimento é considerar que na obra tudo é significante: uma gramática não é bem descrita se todas as frases não puderem ser explicadas por ela; um sistema de sentidos é insatisfatório se todas as falas não puderem aí se encaixar num lugar inteligível: que um só traço seja demais e a descrição não é boa. Essa regra de exaustividade, que os lingüistas conhecem bem, é de um alcance bem diverso do que a espécie de controle estatístico que, ao que parece, querem transformar numa obrigação do crítico. (PICARD, 1970, p. 222)